domingo, 14 de dezembro de 2014

(Não) Temos vagas - parte II - Mercado de trabalho

Não basta ter uma boa formação, diversos cursos de aperfeiçoamento e atualização, fluência em um segundo e terceiro idiomas. Você é trans e isso desabona todo seu potencial. 


Não basta ter uma boa formação, diversos cursos de aperfeiçoamento, fluência em um segundo ou terceiro idiomas. Você é trans e isso desabona todo seu potencial.

Uma das minhas preocupações, talvez a maior delas, era até quando conseguiria me manter empregada na iniciativa privada a partir do início da transição. Esse período foi de exatamente um ano. Aquele ano (2012) foi fantástico, sai da minha zona de conforto, me deu muito medo no início, afinal o novo sempre me desperta esse sentimento, ainda.

Durante um ano me iludi achando que estava tudo bem, que não seria demitida, e que passaria sem preocupações profissionais pela fase mais conturbada da minha vida. Estar empregada me dava uma segurança momentânea, pois, poderia manter o tratamento hormonal, as consultas médicas, psicologa, fono, esteticista dentre outras coisas, mas de repente o chão parece ter sumido debaixo dos meus pés. Foi difícil aceitar a demissão sem motivo e quando aconteceu, só me  passava pela cabeça "pronto, acabaram minhas chances na iniciativa privada, e agora?".

Tenho um bom currículo, ouço isso com frequência. Graduação, pós-graduação, inglês fluente, dezenas de cursos de atualização e aperfeiçoamento, sete anos de experiência em uma auditoria global que é uma vitrine profissional, alguns poucos e suficientes contatos. Mas sou trans.

Dentre as opções limitadas que se vislumbravam em meu horizonte haveria duas possibilidades: negócio próprio ou concurso público. A primeira opção era pouco viável, pelo menos em Blumenau e eu não conseguiria me ver passando por uma crise econômica, a segunda opção, apesar de eu achar impossível poderia ser uma saída. Gosto do impossível porque lá a concorrência é menor [1].

Foram dezenas de entrevistas na inciativa privada, algumas delas super produtivas que me faziam alimentar uma falsa esperança de que eu conseguiria me recolocar na minha área de formação. "Vamos marcar uma entrevista pra conversarmos pessoalmente, vou te mandar um questionário bem simples só pra coletar alguns dados, vamos entrar em contato..." Por que o preconceito seria diferente comigo? E, de fato, não foi! Eu não sou uma privilegiada.

Agrava-se o fato de morar em uma cidade extremamente retrógrada, imagino, como a maioria daquelas em que sobrevivem mulheres trans. Oportunidade há, para os ditos normais, para quem segue as regras do jogo, para os que não questionam, marionetes, fantasmas da própria vida.

Passados dois anos consegui meu lugar ao sol. Meu telefone ainda toca vez ou outra, um headhunter querendo me entrevistar. Não estou em posição de superioridade, mas com toda certeza não preciso mais me submeter a esse preconceito excludente e agora posso recusar uma proposta, afinal, nunca há vagas para trans!



[1] Walt Disney

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Primeira impressão

A primeira vez que me veem, os olhos parecem imãs, e, fixam em minha fisionomia como se fosse meu pólo magnetizado, analisando cada detalhe do meu físico, trejeitos, roupas etc. Uma análise minuciosa que talvez só um supercomputador consiga fazer em tempo recorde.

A primeira quinzena nessa nova vivência fulltime foi um grande desafio pra mim, e após dois anos ainda é. Chego na biblioteca que costumava frequentar havia algum tempo (como homenzinho) e subo - nem tão tranquilamente assim - as escadas até encontrar o lugar mais confortável para me acomodar. Num primeiro momento olhares furtivos e curiosos, cochichos, nada que me abale, sento, abro os livros e sigo minha rotina de estudos.

Quando subo ou desço as escadas com uma pilha de livros nos braços, o que chama a atenção, possivelmente, é o fato de uma trans estar estudando, como se isso fosse algo inimaginável nessa galaxia, parece que é. Unicórnios não existem, trans que estudam, a sociedade imagina que também não. 

Passa pela minha cabeça ser inevitável o pensamento coletivo "Essa coisa não deveria estar num salão de beleza ou numa esquina qualquer negociando o corpo?" NÃO. Eu não sou um esteriótipo, estou apenas buscando o conhecimento e a educação que lhes faltam e o meu melhor futuro pessoal e profissional longe desse sistema de castas velado. Sim, vos desafio a tentar me impedir de expandir meu potencial, meu horizonte.

Os dias se seguem e de repente o diferente passa a integrar o ambiente e já não é mais tão diferente assim. Como costumo dizer, passei a fazer parte da paisagem. Alguns curiosos tentam se aproximar, outros nem ousam, talvez eu não permitisse mesmo, melhor assim. Com pouco contato, por precaução, pela minha segurança física e emocional e porque nunca fui muito de contato social.

Colhi poucas mas ótimas amizades nessa biblioteca durante pouco mais de um ano, e mais do que isso, colhi respeito e admiração de pessoas com quem nunca troquei uma palavra sequer. O diferente ficou comum. No fim das contas, essa história renderia um bom livro.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Experiências


São as experiências que trazem amadurecimento e uma nova perspectiva sobre os fatos e situações corriqueiras, amadurecer é saber lidar com as decisões tomadas.

As experiências pelas quais passo são uma excelente fonte de textos. Todos os textos publicados neste blog carregam uma experiência pessoal pela qual passei. Por se tratarem de situações carregadas de sentimentos, desde o começo tinha em mente que registraria essas experiências pra tê-las como um diário e relembrar muitas dessas situações, sem descartar o objetivo de compartilhá-las.

O período de junho a agosto deixou de me trazer experiências gratificantes, merecedoras de uma página no diário, pois Eu estava me sentindo extremamente insegura pra poder enfrentar o mundo.  Resultado, estava fazendo tudo, ainda vestido de menino e tudo isso por puro medo da reação alheia, até que, mais uma vez, caiu a ficha de que não me privaria de viver minha vida, frequentar um curso, ir ao supermercado, correr - amo -, falar com as pessoas, enfim, fazer as coisas que qualquer pessoa normal faz.

De repente me sinto tão segura de mim, novamente, que vou onde tenho vontade de ir, claro, procurando de todas as maneiras preservar minha integridade física, psicológica e emocional. Viver é um exercício diário e todas as manhãs desperto feliz por mais um dia em que tenho a oportunidade de ser Eu mesma, de poder fazer o melhor mais uma vez, de poder aprender e ensinar e principalmente, filtrar/decidir aquilo que me atinge e aquilo que já não possui mais qualquer tipo de influência no meu emocional, como risinhos, cutucadas, etc.

Então a partir dessa semana, me permito mais uma vez viver velhas e novas experiências, me descobrir e redescobrir, me reinventar e deixar de lado tudo aquilo que não interfere em minha vida e que não me traz qualquer tipo de preocupação. É ótimo compartilhar estas experiências, pois é uma forma de aprendizado, amadurecimento, preparação para as situações vindouras e uma forma de extravasar toda essa felicidade que parece ter chegado de uma vez só.

Na eloquência da minha mente, frases vêm e vão numa velocidade assustadora e uma delas ficou de modo permanente, "se você quer um resultado diferente, faça algo diferente", porque é tão fácil se acomodar e chegar ao final do dia com o mesmo resultado dos outros tantos que ficaram pra trás, sem ter uma nova história pra contar, e uma das coisas que mais quero é continuar tendo histórias a compartilhar.

Quando o despertador tocar será uma nova oportunidade de fazer tudo diferente, mais uma vez.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

O caminho - parte I


Para alcançar um objetivo, é preciso renunciar temporariamente a certos prazeres, suportar a dor mais intensa. Só quem não desiste chega ao fim e a recompensa é demasiadamente gratificante.

O início da transição, talvez, seja a parte mais difícil de conviver. Aceitar o fato de que tenho incongruência de gênero e lidar com esse fato, me tomou um tempo e energia enormes. Dar o primeiro passo é difícil quando você está na zona de conforto, aparentemente está tudo bem, mas no meu interior ainda não estava pacificada minha decisão. O medo do desconhecido - nem tão desconhecido assim, pois sabemos ao que estamos sujeitas - me fez repetir um cotidiano massante por anos.

Quando dei meu primeiro passo rumo à transição, ainda havia muito medo do que poderia acontecer. Antes mesmo de ter em mãos a receita médica com a dieta hormonal, precisaria ter alguma certeza, por mais remota que fosse, de que Eu poderia me adaptar às mudanças radicais que passariam a fazer parte da minha vida. Foi quando em dezembro de 2011, sai de casa pela primeira vez vestida de acordo com o gênero com o qual me identifico, maquiada, perfurmada. Quando você está acostumada a ficar somente em casa, os primeiros raios de luz te trazem um medo tamanho que foram capazes de me paralisar por uns bons 10 minutos. Era um conflito interno gigantesco, vai, não vai, vai logo, não, não vai.

Se em algum momento do passado havia dúvidas quanto a transição, em todo o tempo que passei me arrumando até a hora de virar abóbora, Eu tive a mais plena certeza de que, daquele momento em diante, meu futuro reservaria uma vida plena e feliz, bastava colocar os pés fora de casa e enfrentar o mundo. Foi o que fiz. Era uma escolha e haveria consequências, algumas conhecidas, outras não.

Em janeiro de 2012 com a receita médica em mãos, uma nova vida estava começando timidamente. Muitas vezes queria que a transição se passasse como nos vídeos que costumava ver no Youtube, uma transição em 7 ou 8 minutos. É preciso ter paciência, aprender a lidar com a angústias, frustrações, pois não tem como controlar os efeitos e as mudanças hormonais. Gostaria de ter mais quadril, de ter os ombros mais finos, ter seios maiores e por ai afora.

Com grandes poderes nascem grandes responsabilidades, e Eu precisaria ser forte o suficiente pra lutar pela minha vida. As pedras no caminho se resumiram no tratamento ainda no masculino - quando você ainda está masculinizada - e na rejeição de parte da família. Nesses momentos Eu tinha que mostrar minha força e você só descobre que é forte, quando ser forte é a sua única escolha. Abri mão de muitas coisas, segurança, tratamento digno e humano, uma vida sem constrangimentos mas em troca ganhei milhares de outras, uma vida social, amigos, maturidade, felicidade.

Quando comecei a me sentir um pouco mais confiante, passei a sair para os meus compromissos sociais como mulher, afinal Eu estava nascendo e me descobrindo em cada passo, em cada ciclo de respiração, tudo era novo e - continua - empolgante. Estava extremamente insegura em relação a tudo, não entrava em locais onde não havia estado antes, não entrava em locais com muita gente, não andava por ruas movimentadas, estava exalando insegurança.

Com o passar do tempo, comecei a ganhar confiança e a me sentir mais segura, já não estava mais tão preocupada com os outros e suas reações e sim com a minha vida e minha felicidade. Aquele friozinho na barriga toda vez que me expunha fazia parte da minha rotina - ainda faz, em menor grau - e cada lugar novo que frequentava era uma barreira quebrada, um obstáculo a menos pra superar e a adrenalina de ter conseguido vencer mais um desafio era tamanha que acabava se transformando em um ótimo motivo pra enviar um monte de emails compartilhando a conquista e começar a visualizar o nascimento desse blog, como uma forma de extravasar o que mais tarde soube se tratar da mais pura felicidade que alguém pode sentir.

Ainda sinto esse friozinho na barriga, o que é bom, me faz sentir cada vez mais viva. 

terça-feira, 16 de julho de 2013

Opinião - Paradigmas


Geralmente a primeira impressão é a que fica, e no caso das transexuais, essa primeira impressão já é formada erroneamente antes mesmo do primeiro contato.

Uma coisa é certa, a palavra transexual impõe uma série de paradigmas enraizados profundamente nessa miséria cultural e na falta de pensamento crítico. O senso comum diz que toda transexual é prostituta, toda transexual é derivada de um gay afeminado, toda transexual tem, sexualmente, que gostar de homens e mais uma vez o senso comum está ridiculamente errado. Acham que estamos presas a esse tripé, quando na verdade em toda regra há exceção - e milhares!


Dia desses fui surpreendida por uma pergunta de uma terceira feita ao meu irmão, com quem divido muito da minha vida, essa terceira havia perguntado a ele se eu só fazia programa. Qual não foi a surpresa dela ao saber que não faço e jamais tive que fazer programa pra sobreviver. Senso comum. Não consigo ter um sentimento negativo por quem na verdade merece compaixão, com quem está presa na própria ignorância. O mundo vai muito além de onde minha visão consegue alcançar, mas há quem tem a convicção que não.

Mesmo não existindo oficialmente um sistema de castas aqui no Brasil, o que acontece conosco é exatamente isso. Com muito esforço e vontade de lutar por uma vida melhor, conseguimos a recompensa, mesmo que parcial de uma vida mais digna. É importante saber que existem milhares de nós espalhadas por esse mundo e que conseguem romper essa ignorância. Não estamos amaldiçoadas a viver da maneira que não queremos, castigadas por buscar nossa felicidade, agredidas e violentadas por sermos quem somos. Existe um mundo muito melhor, é preciso força, pois às vezes ele parece estar um pouco distante.

Quando cheguei onde moro atualmente, obviamente, ela abriu o portão para que pudéssemos conversar um pouco, e antes que Eu pudesse dizer meu nome vieram as primeiras condições, então ela esperava que Eu me levantasse e fosse embora, poderia sim ter feito isso, com toda certeza, mas se naquele momento virasse as costas estaria concordando com o que o senso comum prega. As condições seriam: i) não quero quem faz programa e ii) não quero que use roupas vulgares, o lugar perfeito pra mim. A ignorância, infelizmente, comum nessa província chamada Blumenau. Um lugar bom pra viver e como a grande maioria das cidades o que acaba por transforma-la num péssimo lugar pra se morar são as pessoas e seus preconceitos.

Realmente há pessoas iluminadas, que além de afirmarem não ter preconceito, agem de coração aberto e tratam todos como iguais, apesar das diferenças que cada um carrega dentro de si. As oportunidades que essas pessoas nos proporcionam, seja numa conversa ou num simples gesto, podem ser a oportunidade que estávamos esperando pra conseguir ver o mundo de uma forma menos agressiva e mais humana.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Interpessoal - parte I


Não é preciso muito esforço para que as pessoas te tratem de acordo com o gênero com que você se identifica, basta um pouco de bom senso e boa vontade. Às vezes nem é preciso base, delineador, batom, sombra ect…basta pedir para quem te atende que te trate de tal forma, pra mim funcionou muito bem.



Costumo ficar muito tensa quando entro pela primeira vez num lugar, entretanto, já estive várias vezes neste mesmo laboratório, mas desta vez a diferença se resume ao tempo e às mudanças hormonais cada vez mais acentuadas. Semana que antecede consulta com endocrino é semana de exames. A última vez que estive no laboratório foi há seis meses, ainda com rosto e roupas masculinos - ok, nem tanto, e um documento que apresenta o nome de alguém que cedeu seu lugar nessa vida pra que eu pudesse viver.

Retorno ao laboratório e desta vez com rosto e roupas femininas, o oposto do que se viu algum tempo atrás. O documento continua o mesmo e esse é o momento que deveria ser constrangedor, só que não. A relação de exames com meu nome social e o documento com meu nome civil, peço pra recepcionista que na hora de me chamar, o faça pelo nome social, e assim foi, pra minha surpresa, sem constrangimentos e com minha dignidade e condição de gênero respeitadas do início ao fim da coleta de sangue.

Acho um ato tão simples de ser executado e que não requer esforço, basta um pouco de bom senso e vontade pra que todos continuem felizes, é uma linha tênue entre o céu e o inferno. As pessoas não entendem o quanto isso machuca, basta uma letra A nos verbos, adjetivos, substantivos, etc., simples assim, mas há quem insiste em não fazê-lo, e é nessa hora que o chão pode desaparecer sob seus pés, como em algumas ocasiões que passei.

Ás vezes não é preciso maquiagem e roupas femininas pra te tratarem como mulher. Basta um pedido singelo e aguardar o desfecho, apreensiva. Nas três ocasiões em que estive na clínica onde realizei a feminização facial foi assim, apenas solicitei à recepcionista que me anunciasse como Gabriella e quando estivesse liberada minha subida que também utilizasse esse nome que ecoaria por todo o saguão do prédio, mais uma vez minha solicitação foi atendida. Todos felizes, continuamos cada uma em seus afazeres.

Pude perceber que as pessoas quando querem te tratam de acordo com sua identidade de gênero, foram poucos os lugares onde tive um tratamento não digno, e são nestes lugares que não voltei a colocar os pés. Minha autoestima e dignidade são mais importantes que um sabor que pode ser reproduzido em casa ou em outro local que te trate como mereces. 

Quando ocorre de me tratarem no gênero masculino, talvez esse seja o melhor que essas pessoas conseguem fazer do alto de seus preconceitos e ignorâncias, retribuo com um sorriso, um muito obrigada e -10% na conta.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Parâmetros


Meu modelo de uma vida feliz se resume a coisas simples, entretanto, uma delas exige um esforço sobrenatural para conquistar. Nada é impossível quando se tem em mente que a longa caminhada rumo à felicidade começa com um primeiro passo. Não tenha medo de sair da inércia, cada passo vale à pena - e muito.


Pra viver a vida normal que havia formado como parâmetro nos meus sonhos possíveis de realizar quando ainda era pequena, teria que enfrentar um grande desafio, sem dúvida o maior pelo qual alguém passa: ajustar meu corpo à minha mente. Algo me bombardeava com a imagem de felicidade, mas se, e somente se, Eu tivesse meu corpo feminino, e de fato foi isso mesmo que acabou acontecendo, meu parâmetro de felicidade estava condicionado a esse fator, super importante pra mim.

Não que Eu abri mão de ser feliz enquanto a transição não começava, mas fingia muito bem isso e fingir pro exterior é muito mais fácil do que pra si mesma. Você pode enganar uma pessoa por muito tempo, algumas por algum tempo, mas não consegue enganar a todas por todo o tempo [1]. Havia um falso parâmetro de felicidade num corpo masculino que se resumia a ser alguém que EU jamais seria: extrovertido, tagarela, másculo e desleixado, a típica imagem do macho dominante, completamente diferente da minha delicadeza, sensibilidade, feminilidade e dos meus desejos e sonhos românticos femininos.

Depois de muito tempo de castigo na solitária e uma conversa franca comigo mesma, um insight profundo me fez pensar que para que Eu soubesse se estava feminina a ponto de ter minha tão sonhada vida feliz, eu teria que fazer parte de uma amostra e isso incluiria estar inserida num grupo de mulheres, sair com elas, conviver nesse grupo, enfim, ser um item aleatório dessa amostra, o que pra mim não seria difícil graças ao convívio exclusivamente feminino na infância e parte da adolescência. O desafio agora era adequar os maneirismos e alguns pequenos detalhes para que Eu pudesse ser vista como mulher por quem estava observando o grupo pra não contaminá-lo.

Tive que escolher alguns modelos de maneirismos femininos e comecei a observar em filmes. Quem se aproximaria da imagem de mulher perfeita que Eu havia criado? Teria que ser alguém super feminina, educada, recatada mas com certa sensualidade, dentre outras características, uma Lady e apareceu uma pequena lista de modelos que serviriam pra que Eu pudesse dar início a mais essa etapa da transição. Minhas eleitas foram Tina Fey, Kate Beckinsale, Carrie-Anne Moss, Dira Paes e isso nunca teve ligação com beleza e sim com feminilidade e com o que se aproximava do meu ideal de feminino sem parecer algo exagerado, interpretativo ou caricato.

A observação foi fundamental e estes modelos me ajudaram muito a evoluir como mulher, me dando mais segurança em seguir adiante. Não foi necessário interpretar, os maneirismos eram algo que sempre foram intrínsecos à minha pessoa, só precisava começar a colocar em prática novamente e pra minha surpresa depois de apenas quatro meses todos eles estavam lá de forma natural.

Não se trata de escolher os modelos certos ou errados, apenas escolha o que te identifique, afinal o melhor parâmetro é aquele te faz uma pessoa melhor e feliz.

[1] Abraham Lincoln

terça-feira, 11 de junho de 2013

(Não) Temos vagas


Custo a acreditar que estamos fadadas ao subemprego, aos salões de beleza, à prostituição. Somos tão capazes quanto qualquer outra pessoa, entretanto é mais fácil fechar os olhos para um problema do que encarar a realidade, e é isso o que a iniciativa privada (não generalizando) nos oferece como opção, retirando nossa capacidade de viver a plenitude profissional.

Quando Eu era pequena, tinha um sonho profissional que era ser auditora. Adorava brincar de escritório, organizar papéis, lápis, canetas e emitir meus pequenos relatórios em riscos ilegíveis de quem está aprendendo a escrever. Me formei em Ciências Contábeis, estudei inglês, cursei uma pós-graduação, dedicava horas e mais horas a estudar, arregacei as mangas, fui à luta e venci.

Em 2004 consegui entrar para uma das Big 4 de auditoria, onde passei sete anos da minha vida. Vida pessoal e projetos que ficaram do lado de fora da porta quando assinei o contrato de trabalho, o que me identifica, palavra por palavra esta passagem do filme MIB Homens de Preto.

Adorava o trabalho e em meados de 2010 com as diversas ações que trouxeram à tona o tema diversidade sexual, a empresa implantou mundialmente uma política de inclusão realmente eficiente. Todos são bem-vindos, desde que sejam capazes de passar pelo processo de seleção esmagador e realmente não importava nenhuma questão de identidade de gênero, toda pessoa era uma pessoa e com suas diferenças respeitadas poderia contribuir igualmente para o desenvolvimento da empresa.

Em meados de 2011, no auge da minha crise depressiva, abri o jogo e me senti de fato acolhida e senti na pele o quanto a política de inclusão estava enraizada nas pessoas ao meu redor, embora em alguns momentos Eu não estivesse livre de brincadeiras, em outras palavras, bullying. Pude também notar a mobilização e todo o esforço que o RH e o alto escalão estavam fazendo para me ajudar durante o processo de transição. Fiz apenas dois pedidos: 1) não seria bandeira de nenhum movimento; 2) não gostaria de ter meu nome divulgado nos comunicados internos.

Embora estivesse num ambiente agradável de trabalho, para algumas pessoas a política de inclusão conflitava diretamente com suas crenças, e isso me fez pegar nojo de certas pessoas que se achavam superiores a tudo. No início de 2012 tomei a decisão mais difícil, me desliguei da empresa e segui meu rumo, entrando de cabeça nessa jornada maravilhosa da transição, trabalhei o ano de 2012 inteiro me escondendo atrás de uma farsa masculina. Como não conseguia mais me expressar ao final de 2012 optei por buscar mais uma vez meu sonho profissional, porém no serviço público.

As entrevistas de que participei posteriormente, estavam mais para um programa estilo Jô Soares, onde me recusava a responder perguntas de cunho personalíssimo e os nãos e outras desculpas esfarrapadas fizeram parte frequente da minha vida.

Atualmente dedico as horas do meu dia na busca do meu lugar ao sol no serviço público, contudo, isso não quer dizer que estarei num ambiente livre de preconceitos, onde terei aceitação incondicional, onde serei respeitada, posso estar enganada, como dizem os mais arrojados, regras são feitas para serem quebradas e no serviço público há muitas, que não serão quebradas comigo.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Invisibilidade

Às vezes parece que me perco de mim, é o que defino como minha invisibilidade, pois preciso olhar em volta para saber onde estou, o que estou fazendo ali e quem sou Eu, visível aos olhos dos outros, invisível aos meus.

Às vezes parece que me perco dentro de mim, é o que defino como minha invisibilidade, pois não me reconheço. São tantas demandas, que a máquina parece estar entrando em curto-circuito e então é preciso um tempo de recuperação para tudo voltar à normalidade.

Tenho meus dias em que gostaria de paz absoluta, sem que ninguém perguntasse por mim, sem que o telefone tocasse, sem que me notassem na rua, ficar invisível por um período curto de tempo só pra estar em contato comigo mesma e me descobrir um pouco mais a cada dia. O que gosto, o que abomino, definir minhas opiniões sobre tudo que julgo realmente importante e que possa influenciar minha vida. Fazer tudo isso sem levar em consideração a mídia alienante, um exercício de autodescoberta pura.

Os meus momentos de introspecção são assim, tenho vontade de sumir do mapa e aparecer dias depois como se nada tivesse acontecido, ficar isolada no alto de uma montanha no Tibete até que o equilíbrio volte a reinar. Essa introspecção me acompanha desde pequenina, ficar calada e pensativa, tentando não me agoniar com o futuro, para que se transforme em ansiedade, e o melhor é viver o agora. Isso sempre acontece quando tomo uma decisão e a exerço, uma decisão que vai mudar minha vida, mais uma vez, e que acaba por me gerar essa condição charlatanesca de - tentar - adivinhar o futuro.

Depois de dois ou três dias me recupero, e tudo retoma sua normalidade, a visibilidade volta. Quebro meu voto de silêncio e volto a ouvir minha própria voz, cantar minhas músicas preferidas, não me importo se o telefone toca, passo a querer mais uma vez ser notada e desejada - embora seja difícil passar desapercebida com 1,81cm, retomo meus textos. A vida volta ao normal e de repente surge um convite pra um bate papo com as amigas, o que é sempre bom.

Ser vista e lembrada é evidência mais que suficiente de vivacidade, de visibilidade, afinal quem não é visto, não é lembrado. E saio por esse mundo afora para saciar minhas necessidades humanas básicas, não sou de extravagâncias. Sendo vista ou não, o que me importa de verdade é minha paz interior, que nesse momento mágico da vida retorna ao seu equilíbrio com tudo a minha volta.

Ah vida imperfeita, não quero ser invisível todos os dias, e convenhamos, quando nem o panfleteiro te entrega o papel é sinal de que alguma coisa está muito errada.

sábado, 18 de maio de 2013

FFS - impacto psicológico

É difícil encontrar qualquer tipo de comentário, depoimento, matéria sobre o impacto psicológico que a cirurgia de feminização facial causa em quem passou pelo procedimento. Essa lacuna pode esconder armadilhas que jamais imaginaria passar - novamente.

A feminização facial foi algo com que sempre sonhei, e no último mês esse sonho, tão distante, tornou-se realidade. Não pude e ainda não consigo conter as lágrimas por ter dado um passo tão importante na transição, lágrimas de felicidade.

Um mês ficou pra trás desde a realização da cirurgia de feminização facial, o rosto continua inchado e o roxo, principalmente na região dos olhos, não quer dizer adeus, essa é parte do impacto que minha ansiedade causa em querer ver o resultado final o quanto antes. Paciência é a palavra chave, e se não a tiver, aprenderá de forma dolorosa que é preciso tempo para o corpo se recuperar e revelar o novo rosto esculpido por baixo de todo esse inchaço e roxidão.

A minha expectativa em relação ao que gostaria de ver refletido no espelho acaba causando uma confusão de sentimentos. Há momentos em que estou feliz, analisando milimetricamente as nuances reveladas pela cirurgia, há momentos em que estou triste, simplesmente não consigo ver as mudanças no rosto que o deixaram mais feminino. É, não voltei de um cruzeiro de férias, retornei de um procedimento invasivo e que requer tempo e muita paciência para me recuperar. 

Nessa euforia e nesse turbilhão de sentimentos, os sintomas da depressão parecem querer voltar a todo instante: tristeza profunda, falta de apetite, desinteresse pelas atividades antes prazerosas - dentre elas escrever - e o meu velho companheiro, o isolamento da vida social. É apenas uma fase de recuperação, inevitavelmente aconteceria, e dentro de dois ou três meses ficará no passado. E essa confusão de sentimentos me acompanhará até a aprovação no novo teste da vida real, ou seja, até que o olhar alheio me reconheça como essa nova mulher com quem durmo e acordo todos os dias da minha vida*.

Algumas vezes me vejo com os traços cada vez mais femininos, e isso, claro, me deixa com a cabeça nas nuvens e os pés no chão, outras vezes, porém, penso em não olhar o reflexo, não gostando do que verei, pelo menos nos próximos dois meses. É o resultado de uma equação dinâmica cruel, que não se importa com o tempo de acompanhamento psicológico, tampouco com sua capacidade de lidar com as adversidades dessa vida: autoestima instável ou estável + olhar diferenciado sobre a imagem no espelho = dualidade da mente - gosto ou não gosto do que estou vendo, a verdade!

Foi importante me desapegar da imagem que estava acostumada a ver nos reflexos por onde andava e tive que aprender a reconhecer a nova imagem, a nova voz, essa renascida Eu - mais uma vez.

Você espera que a cirurgia mude completamente sua vida, o que não é 100% verdade, torna-a mais fácil em alguns aspectos, por exemplo, o trato das pessoas é diferente quando te veem como mulher e, por outro lado, é embaraçoso quando você tem que mostrar um documento. Detalhes que fazem parte da vida de toda/o guerreira/o trans. Portanto, esteja preparada/o para renascer mais uma vez.

*PS.: A opinião de alguém não deve se tornar sua realidade. Me refiro ao fato de que na cidade onde moro - Blumenau/SC, a ação de me apontarem na rua incomoda demais, a ponto de me devolver os sintomas da depressão. Essa aprovação nesse novo Real Life Test me deixará sem dúvida muito mais feliz e minha qualidade de vida melhorará significativamente.